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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Repetência e Alfabetização


JOÃO BATISTA ARAUJO E OLIVEIRAÉ IMPRESSIONANTE o avanço do Brasil na correção do fluxo escolar. Há pouco mais de dez anos, tínhamos uma pirâmide: os alunos da primeira série eram quase o dobro do universo da quarta. Hoje, a pirâmide virou um pilar -são aproximadamente 3,8 milhões de alunos em cada um dos anos iniciais. Mas o pilar é mais grosso do que deveria -cerca de 500 mil a mais em cada série- e permanecem fortes os indicadores de distorção. O primeiro deles é a quantidade de crianças acima da faixa etária: nas cinco séries iniciais, há 3,2 milhões de alunos com mais de 11 anos. Ou seja, as vagas disponíveis são suficientes para seis séries escolares. Isso representa um desperdício anual de quase R$ 4 bilhões por ano. O segundo problema é o elevado índice de repetência -quase 15% ao ano. Somada à evasão, a perda anual é próxima de 18% ao ano, o que acrescenta desperdício adicional de outros R$ 4 bilhões/ano. Resumindo, vão para o ralo anualmente quase R$ 8 bilhões, e a maior parte desse prejuízo se deve ao elevado nível de reprovação e suas sequelas. Em 2009, o Ministério da Educação (MEC) iniciou um programa para incentivar as redes municipais do ensino a corrigir o fluxo escolar. Na sua primeira fase, o programa concentra-se nos 1,3 mil municípios de menor Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) -a maioria deles com notas inferiores a 160 pontos na Prova Brasil. Como executor de parte desse programa, o Instituto Alfa e Beto aplicou um teste para avaliar o nível de escrita dos alunos do segundo ao quinto ano de 350 desses municípios, em 25 Estados da Federação. Foram avaliados 338 mil alunos, mais de 70% do total da matrícula dessas séries. O teste consistiu de ditado de palavras, ditado de frases, frase escrita a partir de um estímulo e uma redação simples. Os resultados foram robustos -e aterrorizantes. Do total de alunos avaliados, 70% foram considerados analfabetos, independentemente da série. O grau de analfabetismo cai de 86% no segundo ano para, respectivamente, 75%, 61% e 50% até o quinto ano. Nas classes multisseriadas, 75% dos alunos são analfabetos. Esses dados confirmam o que já sabemos da Prova Brasil: um resultado de 150 pontos em língua portuguesa, no quinto ano, o que significa que pelo menos metade dos alunos dessa série são analfabetos. A média nacional, que é de 172 pontos, sugere que, no Brasil como um todo, 20% dos alunos do quinto ano mal conseguem fazer um ditado e raramente são capazes de escrever uma frase diante de um estímulo, como um desenho. Os resultados comprovam a ineficácia da pedagogia da repetência e as virtudes limitadas da promoção automática. Se o aluno é reprovado, fica atrasado e não melhora muito sua capacidade de ler e escrever: quanto mais atrasada a série, menos crianças conseguem ler. Se o aluno é aprovado sem saber ler, metade deles consegue melhorar um pouco e aproximadamente 10% serão alfabetizados a cada ano adicional. Ou seja: é patente que repetir o ano pura e simplesmente não melhora e traz outros prejuízos. Ser aprovado traz menos prejuízos e melhora a condição de alguns alunos. A evidência disponível, confirmada pelos resultados aqui apresentados, sugere que a correção do fluxo escolar necessita a adoção simultânea de três medidas: 1) alfabetizar as crianças no primeiro ano; 2) acelerar os alunos defasados, e o primeiro passo é alfabetizar a maioria deles; e 3) erradicar a pedagogia da repetência, sem cair na saída fácil da promoção automática. Dessas três medidas, a mais importante e urgente consiste em alfabetizar os alunos no primeiro ano que chegam à escola. A mais duradoura é erradicar a pedagogia da repetência e instaurar em seu lugar uma pedagogia de ensino eficaz. Isso requer uma revolução. Acelerar alunos defasados sem implementar outras medidas fará sentido na medida em que servir para alavancar e provocar as outras mudanças. Programas e projetos que privilegiam a aceleração de alunos defasados podem ter o mérito de atender, de maneira diferenciada, aos alunos que ficaram para trás. Possivelmente, irão contribuir para melhorar a vida dessas crianças e, de maneira mais modesta, reduzir a defasagem. Porém, sem as medidas complementares, não vão funcionar. Apenas enxugamos o chão, mas deixamos a torneira aberta. JOÃO BATISTA ARAUJO E OLIVEIRA, 63, psicólogo, doutor em educação, é presidente do Instituto Alfa e Beto. Foi secretário-executivo do Ministério da Educação (1995).
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