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terça-feira, 7 de setembro de 2010

A CRIANÇA E O ATO DE POETIZAR O MUNDO ATRAVÉS DO DESENHO


A CRIANÇA E O ATO DE POETIZAR O MUNDO ATRAVÉS DO DESENHO
Michele Idaia dos Santos1

Resumo Este ensaio parte de uma investigação que aprofunda a relação entre a criança e o desenho a partir da perspectiva teórica do pensamento fenomenológico de Merleau-Ponty, o qual permite compreender a visão sincrética das crianças: aquela que não separa corpo e mente, imagem e palavra. Merleau-Ponty (1990) sugere que o desenho da criança é uma primeira maneira de estruturar as coisas, ou seja, é através do próprio desenho que a criança passa a descrever o que percebe do e no mundo. Nesse momento, marca sua presença e participação na existência das coisas lançando sentidos no grupo através dos atos de: misturar traços, linhas e cores para produzir narrativas através do desenho. A imaginação poética em Bachelard (2006) permite compreender que o devaneio operante emerge como abertura às linguagens, ao afirmar que a imaginação é capaz de nos fazer engendrar aquilo que podemos ver porque nos faz crer no que vemos. Nesse sentido, só podemos ver bem se sonhamos o que vemos. É através do devaneio que a criança habita o mundo e, para torná-lo seu, pode aproximá-lo e miniaturizá-lo pelo desenho. Palavras-chave: criança, desenho, narrativa.


1. A criança e o desenho

As condições para me compreender, e então compreender necessariamente, eu as conheço bem. É preciso ter (...) ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais longínquo. Friedrich Nietzche

Este ensaio sobre o ato de desenhar lança um olhar à educação das crianças com a intenção de ultrapassar os limites da psicologia do desenvolvimento, cujo objeto de estudo foca o produto e não o processo que se estabelece no ato de desenhar. A interlocução entre as fenomenologias do corpo operante em Merleau-Ponty e da imaginação poética em Bachelard permite compreender a inseparabilidade entre corpo, imagem e palavra, entre narrar o mundo através do desenho e habitá-lo pelos devaneios da mão. Enquanto em Merleau-Ponty (1990) o desenho da criança é a primeira maneira de estruturar as coisas, isto é, através do ato de desenhar a criança narra sua percepção das coisas no e com o mundo, em Bachelard (2006) o devaneio operante emerge como abertura às linguagens ao afirmar que a imaginação é capaz de nos fazer engendrar aquilo que podemos ver porque nos faz crer no que vemos, só podemos ver bem se sonhamos o que vemos! É através do devaneio que a criança habita o mundo e, para torná-lo seu, pode miniaturizá-lo pelo desenho. O Filósofo francês Henry Focillon (2001) contribui para compreender a relação entre corpo e traço ao afirmar que a mão cria e pensa ao encaminhar o corpo para o espetáculo de tornar visível algo. A metodologia busca despir-se de pré-conceitos em relação ao desenho para perseguir o ponto de vista das crianças a partir da reivindicação de Corsaro (1997, 2003) pela presença de um “adulto atípico”, aquele que não tenta corrigir ou controlar seu comportamento. Como resultado parcial, o estudo aponta para a relevância de pensar a ação narrativa através do ato de desenhar enquanto ação sensível de tornar o mundo inteligível para si e para os outros. Aqui, o desenho não é liberação de emoções, mas um sair de si para voltar transformado. Na ação temporal de desenhar a criança não fornece informações das coisas que vê, mas presta testemunho de sua relação no e com o mundo.


2. O desenho e a criança

O encontro com a fenomenologia de Merleau-Ponty permite a ultrapassagem da clássica clivagem entre sujeito e objeto ao permitir contornar os obstáculos tanto da psicologização da imagem quanto da soberania da razão para reabilitar o corpo como linguagem e adesão ao mundo. A fenomenologia do corpo operante contribui para afirmar o dinamismo que impede a imagem de encerrar-se em algum lugar remoto da mente, de deixar-se confinar em um sentido que a reduziria ao estado de signo e a mumificaria. As realizações
da arte2, permitem a comunhão entre corpo e mundo porque a conduta poética é instauradora: é ato no mundo e não discurso sobre o mundo (RICHTER, 2005). Há uma significação “linguageira” da linguagem que não se prende ao “penso” mas ao “posso” que diz respeito ao ser próprio do gesto humano inaugurar sentidos realizando uma experiência e sendo essa própria experiência, isto é, agindo ou – aqui - desenhando. No pensamento de Merleau-Ponty (1991, p.79), “as palavras, os traços, as cores que me exprimem saem de mim como os meus gestos, são-me arrancados pelo que quero dizer como os meus gestos pelo que quero fazer”. Meu corpo pode significar para além de sua existência, ou seja, pode começar, anunciar ou recomeçar e implantar um sentido naquilo que não tinha. E nas palavras de Merleau-Pony (2002, p.186) a ação pode ser pensada através do ato de “marcar no papel um traço de nosso contato com esse objeto e esse espetáculo, na medida em que fazem vibrar nosso olhar, virtualmente nosso tato, nossos ouvidos, nosso sentimento do acaso ou do destino ou da liberdade”. Nesse sentido, cabe, apoiar-se na reflexão de Henri Focillon (2001, p.111) que delibera a mão, como órgão que convida a ter percepções táteis no mundo, designa a essa tão fabulosa parte do corpo, função de permitir o contato com a dureza do pensamento humano. Propondo re-significação do vivido, convidando a operar e transgredir, supondo o engravidamento da palavra.

Merleau-Ponty convida a operar uma redução fenomenológica3 até a experiência originária em que o mundo se constitui como percebido. O mundo ser um percebido implica voltar-se para o domínio do vivido, do pré-reflexivo, do imediato: o corpo como “sensível exemplar”. Não como ponto de partida e de chegada, mas o corpo e seu poder de ser afetado pelo sensível como centro de toda problemática. A sensibilidade ao mundo e ao outro é nosso primeiro elo com mundo. Em Merleau-Ponty o corpo deixa de estar na dependência do poder soberano da consciência (eu penso) para exercer a mediação com o mundo, marcando sua presença em nós. O que o fenomenólogo insiste em destacar é que na relação entre as coisas e meu corpo não há coincidência perceptiva. A experiência perceptiva é única, imprevisível e compartilhada (1999 p.20), “é ela a responsável de que, às vezes, eu permaneça na aparência, e outras, atinja as próprias coisas; ela produz o zumbir das aparências, é ainda ela quem o emudece e me lança em pleno mundo”. Diante disso é válido pensar o universo infantil que em algumas concepções é percebido por falho, obscuro, incompleto assim o desenho da criança é resumido a incapacidade sintética. Onde, necessita ser estimulada, preparada para representar signos que culturalmente foram construídos. Para Merleau-Ponty (2002, p184) essa acepção pode-se definir por ilusão objetivista, pois, estamos convencidos de que o ato de exprimir, em sua forma normal ou fundamental, consiste, dada uma significação, em construir um sistema de signos tal que a cada elemento do significado corresponda um elemento do significante, isto é, em representar. Assim o representar simboliza que, ao desenhar a criança precisa de modelo, simultaneamente transferi-lo e produzir sobre o papel uma espécie equivalente seu. O grande objetivo ai, seria tornar a criança capaz de representar a partir da perspectiva planimétrica, a qual seria única solução do problema, assim o desenho infantil estaria se encaminhando para a perspectiva.


Entre as duas teses de doutoramento – A estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da percepção (1945) – e a última obra O visível e o invisível (1964)4, Merleau-Ponty foi professor, na Sorbonne, de Psicologia da Criança e Pedagogia quando dedicou atenção especial ao estudo das questões voltadas para a aprendizagem, condição de inserção na cultura e no mundo. Neste momento (1949-52), aprofunda a compreensão filosófica do corpo a partir dos estudos da percepção e da linguagem na infância, do desenho infantil e sua relação com os adultos, para alcançar o pensamento selvagem. Em suas palavras, como bem o mostram as antecipações extraordinárias da vida adulta na infância; podemos dizer que o homem total já está ali. A criança compreende muito além do que sabe dizer, responde muito além do que poderia definir, e, aliás, com o adulto, as coisas não se passam de modo diferente (Merleau-Ponty apud Richter,1999, p.23).
 
Assim sendo, o filósofo desenvolve, em seus cursos (1949-52), uma psicologia filosófica a partir da Teoria da Gestalt e da problematização à epistemologia genética de Jean Piaget para afirmar o desenvolvimento infantil como momento completo por si em sua inteireza. Para Merleau-Ponty, a experiência infantil é sempre a de uma totalidade. Para o filósofo, “é talvez com a condição de não falar de uma“representação do mundo” na criança que nós chegaremos a tomar consciência dessa aderência às situações dadas que seria o caráter essencial do pensamento infantil” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.238). Trata-se de perseguir argumentos que permitam problematizar a exacerbação psicológica na abordagem do desenho na infância.


Desse modo o autor singulariza esse universo imaginário da criança através do sincretismo. Para o filósofo,
na criança a percepção é sincrética. As estruturas são amontoadas, globais e inexatas. Algumas vezes, em compensação, a criança pára diante dos detalhes mais ínfimos que tornam a sair sem ligação com o conjunto. Mais que o adulto, ela está sujeita à alternativa de perceber, seja globalmente, seja por detalhes. A percepção infantil é pois, ao mesmo tempo, global e fragmentária (o que não é contraditório), enquanto que a do adulto é articulada (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 196-7).

Para a criança, tudo está ali, naquele universo instigante e que precisa ser tocado, sentido, saboreado para então, através de experiências sensoriais, ser marcado involuntariamente pela narrativa icônica. Ali, o desenho passa de simples representação, para o espetáculo tendo por função tocar aquele que o percebe como tal.

A perspectiva planimétrica pode ser comparada a um método, onde é utilizada como meio para receber um produto final. Assim ao procurar fazer relações do desenho da criança com objetos significantes o adulto não percebe a narrativa infantil que ali está impressa, marcada e acaba por resumir a desatenção! Merleau-Ponty (2002, p.185) diz que a perspectiva planimétrica imobiliza a perspectiva vivida, adota, para representar o percebido, um índice de deformação característico do ponto onde estou, mas justamente por este artifício, constrói uma imagem que é imediatamente traduzível na ótica de qualquer outro ponto de vista, e que neste sentido é a imagem do mundo em si, de um geometral de todas as perspectivas.

Ao contrário, no momento em que a criança é livremente permitida de marcar no papel suas narrativas, expressando sua imaginação, enriquecida de experiências com instrumentos gráficos (lápis, giz de cera, canetas), suportes diversificados, espaço adequado e tempo disponível, dará forma, vida, sonho, desejo, expressão ao seu desenho. Assim, no ato do desenhar estará marcando sua história, imprimindo seu mundo perceptivo e a maneira de concebê-lo. Desta maneira, a criança expressa suas percepções com tanta intensidade que corpo e mente se misturam, assim como a mão e o suporte se entrelaçam, e o desejo pela expressão é ai demonstrado, através do sonhar acordado, do encanto... como a mais sublime marca no papel. Se a criança necessitasse de complemento para o sistematizar suas percepções. Ao contrário, seu pensamento está ali, através do olhar curioso que busca respostas a questionamentos resultantes do que percebe deste mundo e ainda não consegue exprimir, não por falha e sim vivenciar menos experiências que o adulto tornando-se não figura incompleta mas um Ser lacunar.

Nesse sentido detenho a reflexão a partir do pensamento de Gaston Bachelard ao trazer o devaneio operante em seu estado mais simples mais puro - pertencente a anima-. O filósofo em seus estudos sobre os devaneios voltados para a infância destaca lembranças de sua infância. Nas palavras de Bachelard (2006, p.20) as “lembranças da infância feliz são ditas com uma sinceridade de poeta. Ininterruptamente a imaginação reanima a memória, ilustra a memória”. Aqui vale pensar o devaneio da criança em relação ao ato de interrogar e mostrar-se diante do mundo através do desenho. Quando está desenhando a mão se encarrega de trazer para o real o corpo em seu estado mais sublime, afirmando nesse sentido: seu estado de linguagem! É através do devaneio operante, aqui vinculado a ação poética5 que a criança tem experiência estética transformadora e re-criadora de outras possibilidades de estabelecer relação com o vivido. Bachelard (2006, p.94) diz que,“desde que se torne dona dos seus devaneios, a criança conhece a ventura dos poetas” por ter a possibilidade de poetizar o vivido, miniaturizando o mundo sobre a superfície do papel, traz para si um mundo condensado e rico pelo processo de devaneio que se instala no ato do desenho Desse modo convém destacar com Sandra Richter (2005, p.199) sua reflexão sobre a miniaturização, todas as coisas pequenas exigem vagar do olhar a paciência do toque transformador da mão. Miniaturizar o mundo é trazer inteiro pelo olhar para dominá-lo com a mão artesã: basta o gesto que desenha, ou pinta ou modela para fazer um mundo reduzido tornar-se imagem do mundo, microcosmo que se pode envolver e trazer pelo olhar a grandeza do conjunto: em um estante tudo está ali. Toda a variação, toda hierarquia, todo problema menor desaparece.


Nesse sentido a criança embevecida pelo devaneio poético instaura um mundo miniaturizado. É diante dessa ação que ela traz o macro para a proximidade de seu corpo. O que há ai é uma mistura onde corpo e mundo, traduzida pelo entrelaçamento entre o devaneio poético e o processo de miniaturizar o vivido. Nas palavras de Merleau-Ponty (1999, p.121), “ a imaginação é imagem encarnada que encarna o mundo, fenda no corpo em sua abertura mundana onde as coisas passam por dentro de nós, assim como nós por dentro das coisas”. Diante disso o desenho pode ser considerado como testemunho, porque estabelece relação de abertura para o mundo mostrando uma experiência estética diante do vivido.

3. O ato de desenhar como um ritual de iniciação

O estudo aponta para a relevância de pensar a relação entre criança e desenho como ação narrativa estabelecida pela mistura entre corpo operante e devaneio poético. Ao lançar o olhar fenomenológico para o ato do desenho no intuito de compreender a complexidade que se engendra diante da determinada ação poética, pode-se perceber que a mão em contato com a dureza do pensamento possibilita ao corpo experiências traduzidas pela multiplicidade de movimentos. Ora suaves, como uma bailarina, ora abruptos, fortes para dar conta dos humores corporais. As linhas vão se encontrando harmonicamente estabelecendo relação, na tentativa de buscar alcançar o macro através da miniaturização.

Diante dessa busca o que se estabelece é uma narrativa traduzida pela mistura entre o devaneio e ação corpórea que enquanto pensamento em ato estabelece uma relação de testemunho com o mundo. Aqui o desenho não é ato discursivo! Para longe está de ser mera representação do real. Ao contrário, enquanto processo, é um convite para viajar pelas intensas linhas que são sustentadas pelo limite do suporte, dando abertura para o devaneio poético. Nesse sentido Merleau-Ponty (1984, p. 88) faz referencia ao modo como o “corpo é simultaneamente vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar-se e reconhecer naquilo que então vê o “outro lado” de sua potência vidente. Ele se vê, vendo, ele se toca tocando, é visível e sensível para si mesmo”.

É na potencia vidente do corpo que se estabelece à ação performativa da linguagem, no ato do desenho a criança mistura traços transfigurando o suporte. Na ludicidade do ato de traçar, ela faz ser o que não é, e, no entanto, compreende o que não está ali. Na ação poética de trazer a imediaticidade mundana para o suporte, ela prova o mundo das solidões primeiras6 saído de si para voltar transformada sob prática do devaneio poético. Nesse instante o corpo é tecido mundano por tirar do mundo significações, recriá-lo tornando seu. Merleau-Ponty (1984,p.12) ao falar em corpo e mundo afirma que há relação estesiológica, “há a carne do corpo e a do mundo; há em cada um deles uma interioridade que se propaga para outro numa reversibilidade permanente. O mundo está todo dentro e eu estou todo fora”. E diante dessa mistura o que há é a possibilidade de andar por solos ainda mais distantes...E a relação entre criança e desenho não será mais como mera informação, ela prestará um testemunho para aquele que o percebe como tal! Neste momento passa a perpetuar através dos atos de: misturar, pintar e produzir narrativas suas interrogações do mundo vivido. Merleau-Ponty (1984,p.12) diz que, é esse logos do mundo estético que torna possível a intersubjetividade como intercorporeidade, e que, através da manifestação corporal na linguagem, permite o surgimento de um logos cultural, isto é, do mundo humano da cultura e da história.

Assim sendo o desenho dá a possibilidade de construir narrativas que se entrelaçam entre o real e o ficcional, para dar sentido aquilo que ainda não tinha: dar vida a uma árvore que até então estava na montanha, dar som ao latido de um cachorro, que apenas se ouvia do quintal. É nessa poetização do mundo que se estabelece uma narratividade onde a verdade - em um sentido ambíguo - passa dar sustentabilidade ao ato de desenhar devaneando. Para Bachelard (2006, p.94) “há devaneios tão profundos que nos ajudam a descer tão profundamente em nós mesmos que nos desembaraçam da nossa história. Libertam-nos do nosso nome”. E a mão nesse sentido contribui por libertar o pensamento fazendo-o alçar vôo para figurar uma realidade ainda não existente. Nesse sentido o devaneio poético é a própria ação lúdica de do corpo estar em linguagem. Esse processo possibilita outros modos de pensar o mundo e o desenho diante dessa perspectiva passa ser matriz de idéias, pois sua ação possibilita complexificação de sentidos. Através do poder do corpo de “distanciar-se”, como bem diz o pensamento merleau-pontyano7 (1999), é que evoca um “sonhar acordado” no qual resulta num distanciamento sob o mesmo espaço temporal. Nas palavras de Richter (2005, p.195), a distância das coisas em relação a nós é simultaneamente nossa distância em relação a elas. A “distância não é sentida, é antes o sentir que revela a distância” (idem). Nas palavras de Blanchot (2001, p.69), “ver no sonho, é estar fascinado e o fascínio produz-se quando, longe de apreender a distância, somos possuídos pela distância, investidos por ela”. Talvez, apenas a imaginação possa atualizar tal virtualidade. Nesse instante a mão encantada pela mistura entre as cores da tinta e a aspereza da esponja, liberta o pensamento para viajar mais longe, diante dos olhos atentos, à mão nos conduz para o distanciamento. Diante disso é válido retomar á reflexão a partir da ação da mão no ato do desenho, ela permite uma relação com o suporte que libera e conduz o pensamento a agir sobre o inesperado para Henri Focillon (2001, p.111) é a mão pela “acção que define o côncavo do espaço e o convexo das coisas que o ocupam. Superfície, volume, densidade e peso não são fenômenos ópticos; foi pelos dedos e na palma da mão que o Homem primeiro os conheceu” Dessa maneira, a criança vai dando sentido e orientação para a sua ação, pois, o corpo todo está envolvido pelo ritmo que emerge pela mão, seduzida pelo ato de plasmar as coisas, ela as recria para si. Teixeira Coelho (2000, p.188) ao falar sobre figura afirma que, é aquilo que, além de deixar ver alguma coisa, não precisa ser vista para conseguir veicular algo que o espectador pode ver. Há transporte de uma dimensão para outra [material, imaterial; visível, invisível]. Como numa tela de Francis Bacon, vejo o que está ali e vejo o que não é visível e no entanto está ali. Ao brincar e poetizar o mundo, através das artes plásticas, ou seja, modelando, pintando, manchando, a criança convida seu corpo a viver uma metáfora viva. Nesse caso a mão cumpre papel fundamental nesse fazer poético. Henri Focillon (2001, p.108) afirma que “a mão é acção, agarra, cria e, por vezes, dir-se-ia mesmo que pensa.”E, em seu poder de trazer para o visível o que, até então, está no intangível esse órgão tão fabuloso toma posse do mundo através das percepções táteis.
 
Sendo assim, considero a posse do mundo pelo poder de prefigurá-lo, antes através de experiências olfato-táteis, logo após transfigurado pelo ato de marcar na superfície um excesso de sentidos constituindo-se em narrativas icônicas. Nesse instante, o desenho passa da perspectiva de um olhar que o reduz ao produto final para habitar o mundo fenomenológico das visões primeiras, que tocam e indagam, fazendo perceber a intensidade que se instala através do ato de plasmar o mundo em traços e superfícies. O desenho e a criança traçam uma relação poética, pois ambos se modificam a cada encontro: sendo sempre uma primeira vez diante do eterno ritual de iniciação.
 
 
1 Graduada em Pedagogia Anos Iniciais pela UNISC. Mestranda e bolsista CAPES do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisa Linguagens, Cultura e Educação da UNISC-CNPq. E-mail s.michele62@yahoo.com.br.
 
2 Para Merleau-Ponty (1991, p.81), o insubstituível na obra de arte, “o que a torna muito mais do que um meio de prazer (...) é ela conter, mais do que idéias, matrizes de idéias, é nos fornecer emblemas cujo sentido nunca terminamos de desenvolver, é, justamente porque se instala e nos instala num mundo cuja chave não temos, ensinar-nos a ver e finalmente fazer-nos pensar como nenhuma obra analítica consegue fazê-lo, porque a análise encontra no objeto apenas o que nele pusemos. (...) uma linguagem conquistadora, que nos introduza em perspectivas alheias, em vez de nos confirmar nas nossas”.
 
3 No prefácio da Fenomenologia da Percepção (1999, p.10-11), Merleau-Ponty afirma que “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa” para destacar o mal-entendido de Husserl com seus intérpretes. A melhor fórmula da redução, para Merleau-Ponty, é aquela do assistente de Husserl, Eugen Fink, quando falava de uma “admiração” diante do mundo.
 
4 Obra interrompida pela morte súbita em 1961, aos 53 anos, que o colheu à mesa de trabalho em plena atividade intelectual.
 
5 O termo ação poética está sento utilizado com base em estudos através do filósofo francês Paul Valéry (1999), ao utilizar a acepção grega do verbo poïen (ação de fazer algo, criar, fabricar, transformar) para afirmar que arte, e aqui refiro-me ao desenho, não é discurso mas ato, exigindo “considerar com mais complacência, e até com maior paixão, a ação que faz do que a coisa feita”.
 
6 No pensamento fenomenológico de Gaston Bachelard (2006 p.14) a solidão tem relação com o devaneio cósmico. Para o filósofo é um fenômeno da solidão, um fenômeno que tem uma raiz na alma do sonhador. Não necessita de um deserto para estabelecer-se e crescer. Basta um pretexto – não uma causa- para que nos ponhamos em situação de solidão sonhadora. Nessa solidão as próprias recordações se estabelecem como quadros. Os cenários dominam o drama.
 
7 Merleau-Ponty (1999, p.343- 360) aborda a percepção do espaço como experiência que “se dá como distância que se abre diante de nós” através da profundidade. Ao tomar a profundidade como paradigma mesmo em que “se constitui o espaço”- e não como coordenada espacial- ele afirma que o espaço é distante, é profundo e por isso permanece inacessível ( por excesso ou falta) quando está sempre aí, ao redor e diante de nós. A profundidade expõe imediatamente nosso elo com o espaço: ela “nasce sob meu olhar porque ele procura ver alguma coisa” (idem,p. 354).
 
 
 
Referência

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FOCILLON, Henri. A vida das formas. Seguido de Elogio da mão. Tradução Ruy Oliveira . Lisboa: Edições 70, 2001.

LAROSSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n° 19, p. 20-28, jan/fev/mar/abr 2002.

MERLEAU-PONTY, Maurice: Fenomenologia da percepção. Tradução Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

___ . O olho e o espírito. Textos escolhidos / Merleau-Ponty. Seleção de Marilena de Souza Chauí e Tradução de Nelson Alfredo Aguillar-2a edição- São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 85 – 111. (Os pensadores)

___. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

___. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1999.

___. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.

RICHTER, Sandra R. S. A dimensão ficcional da arte na educação da infância. Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. Tese de Doutoramento.

TEIXEIRA COELHO. Guerras culturais: arte e política no novecentos tardio. São Paulo: Iluminuras, 2000.

VALÉRY, P. Primeira aula do curso de poética. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 179-192.

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